Manu Lafer

Músico e Compositor

apontamentos, aparas e arremedos afins

de 2016 à 2023

por Thiago Rocha

The Word

Traduzir (ou verter) poesia entre idiomas é tentar dar nó em pingo d’água. Como exercício, tentemos dar nó em pingo d’água em inglês. É disso que estou falando sobre. Manu se impôs e venceu essa mordaz tarefa artística que sincreticamente podemos chamar de presepada (mas, afinal, que diabos é sincrético?) algumas vezes e notavelmente no álbum cujo título escreve por si: “The Word”. As músicas de The Word estão na voz de Maude Maggart, uma espécie de aviso que Deus enviou à Terra para nos lembrar que, em termos vocais e musicais, há duas coisas que podemos fazer com a voz: uma é cantar; a outra, é a Maude cantar. Com méritos raros, o álbum, com os arranjos do guitarrista Howard Alden, traduz (ou verte) também as músicas, e o faz medida – celestial – para Maude Maggart. Doze das treze canções são versões em inglês de músicas que nasceram em português (PT); mais especificamente, no português brasileiro (PT-BR); mais especificamente ainda, no português brasileiro de Manu Lafer (PT-BR-ML). Para deixar claro que poesia e música são etapas fundamentais e dominantes na ascese, o álbum termina com uma cantada no próprio idioma com o qual nasceu: “Céu”.

Gimme5

“Passos” poderia ser do Gil? Decerto alguns achariam que sim e, com toda a autoridade de quem não conhece a pessoa nem a obra – autoridade total, portanto – afirmo que também Gil quereria que sim; mas essa é uma impressão que se esvai já no segundo passo. Um álbum em comemoração a uma efeméride – 20 anos do lançamento do primeiro álbum de Manu, Baião da flor – e que parece não ser de época nenhuma. Existem obras datadas – mas, e daí? A “Missa de Notre Dame” do Machaut data o século XIV… para a sorte do século XIV.  Gimme5, porém, é uma obra “adatada”, sem data, um álbum que parece pertencer a múltiplas décadas e que contém múltiplas vozes composicionais. É nessa multiplicidade e proficiência, que quando literária vimos em um Balzac, que localizamos o compositor. Gimme5 parece ser de todos e não seria de mais ninguém. Gimme five, gimme another twenty years of Manu.

Frum

Frum não é um álbum todo autoral, sequer mormente autoral é, mas entra na listagem porque é o primeiro álbum que Manu – para dizê-lo do modo mais equivocado possível – inequivocamente expõe sua origem judaica. Nesse sentido, Frum compõe uma trindade com os álbuns ulteriores “Rezar pode, é do prazer” e “Ore-me fé efêmero”, títulos que, a título de falar do óbvio, cabe dizer, são palíndromos. Palíndromos são uma das constantes da obra do Manu, radicalmente investigados nas canções “A cara rajada da jararaca” e “Bustrofédon”. Frum contém duas obras (então) inéditas, “Frum” e “Zhonguo”, e traz de volta A Lente Do Homem – “A lente”, como chamamos nós os que não são íntimos do homem mas sim da obra. “Civilização judaico-cristã” é um construto teórico que não sei bem usar; não obstante, (o)uso dizer que a “A lente” é um apogeu da civilização judaica, da civilização cristã e – ¿whatahell? – da civilização judaico-cristã! Não viva sem a ouvir.

Indo pra Minas

Existem habilidades que são tão elevadas e aperfeiçoadas por alguns indivíduos que acabam levando seus nomes. O Zidane deu um Zidane. Um Woody Allen do Woody Allen. O Toninho gravou um toninho – é o que acontece toda vez que Toninho Horta grava qualquer música. Tudo que o Toninho toca vira Toninho. Toca e vocaliza ouro. Manu, um minerador da canção e cônscio desse dom e manancial, compôs mais essas duas músicas, que eram jóias antes mesmo de irem pra Minas. Indo pra Minas

Sambadobrado

“Definitiva” é uma asseveração terrível. Versão definitiva. Gravação definitiva. A realização definitiva define um fim, uma impossibilidade, ou uma evitabilidade de se tentar de novo. Quem arbitra esse fim? O bom intérprete faz da obra dele; Graça Braga faz da obra de mais ninguém – só dela –, definitiva. Sambadobrado é um álbum que estaremos escutando quando aquela condição definitiva nos acometer; e “Sambadobrado”, a canção, estará tocando em loop eterno – o que é, precisamente, a definição de Céu.

Re:

O álbum Urtext, Manu despido dos maravilhosos arranjos e músicos que o acompanharam. A canção popular brasileira em seu estado mais impávido e límpido. As músicas como elas nasceram, viveram e nasceram de novo. V&V – acrônimo no qual “voz” e “violão” ou “voz e violão” podem ocupar qualquer slot. Uma auto-crítica genética que, ao mesmo tempo que toca proximidade, canta uma distância ritual. Todo fã acha que o artista fala com ele; e é verdade esse Re: é meu, essa resposta é minha.

Thesaurus Vaults

A versão voz & violão do álbum Ta Shemá, este, o primeiro de Manu que tive o privilégio de participar das transcrições, da escrita das partituras. Thesaurus Vaults faz soar o lançamento de Thesaurus, o cancioneiro, o songbook do compositor. Como Re:, é um álbum Urtext e que escancara o que o produtor musical Alê Siqueira chamou de “o Escher da harmonia”. O violão de Manu ponteia e contraponteia Gil, Tatit e João Gilberto e faz ouvir uma miríade de caminhos musicais que levam a uma verdade fatal: Thesaurus Vaults é um álbum didático – mas é didático não porque esteja explicando coisa alguma e sim porque prova a impossibilidade de se escrever tudo o que uma música é. Da música, a partitura sempre será apenas alguma coisa.

Clara Maria

Lançado sozinho, um single, Clara Maria – álbum e música – acompanha “Moira ou Lorena” nessa maneira de se mudar o foco do que se falou no exato momento em que se está falando (de). Não é “Quem é quem?”, nem “Quem era quem?”. É o que não é mais. E quem é quem nessa realização lítero-musical? O texto não está lá para deixar claro. Nem a música. A força motriz da percussão, presente em muitas das músicas de Manu e integralmente no álbum Grandeza, está ali, mas não está também – ou: está, mas não mais quando prestamos atenção a ela. A rítmica imanente da voz e que flui, influi e conflui em tudo o mais, também deixa dúvidas no exato momento em que aparenta certezas: é 3 + 2; às vezes é 2 + 3; é 5; soma 10; soma 20; soma e segue, mas não sempre; às vezes não soma múltiplo exato. Clara Maria multiplica um sem-fim de inflexões que, no auge das questões e equações que confusa e irracionalmente fazemos, deixa claro: na capacidade de fazer voltar a si mesma, nada supera a canção – nesse sentido, a canção é a rival de si mesma.