Clara Maria, composição que seu autor e intérprete, Manu Lafer, permanece regravando e recriando como se fosse parte da realidade e não uma obra de arte, é inspirada em canções inacabadas, como Querida, de Tom Jobim, e testamentais, como Sargaço Mar, de Dorival Caymmi. Trata-se de uma mulher adjetivo, não de duas mulheres objeto, como uma audição descuidada concluiria.
Esta mulher é “clara” e “maria”. O paralelismo bíblico, aqui com cenário católico, permite juntar características que por outra lógica seriam separadas, contrários ou contraditórios.
O arranjo refinado do produtor e programador Alê Siqueira para o ritmo brasileiro ijexá (ritualmente conhecido como afoxé), numa inusual contagem até 5, e “inusual” particularmente poque só ocorre desse jeito nessa composição, com esse violão “inventado” (por Manu Lafer e executado por Swami Jr), espelha o que a escritora Yael Ziegler depreende do livro bíblico de Lamentações (Eichá). O piano de Marcelo Galter, os atabaques de Gabi Guedes permitem este refinamento.
Músicas consagradas como Take Five (de Paul Desmond gravada no conjunto de Dave Brubeck) e Chovendo Na Roseira (de Tom Jobim) , apontam que há mais de um modo de contar até cinco. Trata-se, nesta Clara Maria, de uma prosódia que alterna contagem até 3 com contagem até 2, conferindo a sensação de incompletude, no universo de uma paixão.
Essa paixão da canção, é inspirada na tradição brasileira de Nelson Rodrigues, com a diferença de que aqui a situação não é nem negativa nem patológica. Permanece porém, a descoberta do entendimento do amor e da relação homem e mulher, que é ao mesmo tempo física e espiritual. A letra, erudita e poética, é construída sobre os impulsos selvagens e espirituais das personagens.