até 2015
por Thiago Rocha
Manu Lafer compõe o primeiro nível da canção popular brasileira. Considero a sua produção muito competente e variada. E profícua: lançadas, são mais de cem canções, cerca de 400 compostas. Se você ainda não conhece seu talento, agora é hora boa. Apresento reunidas aqui as canções que considero mais representativas da discografia do paulistano nascido em 1971.
Desde Baião da Flor (1998) são 9 álbuns autorais, um deles com Danilo Caymmi, e outro com Mateus Aleluia, além do DVD A Lente do Homem (2008). Há também 2 álbuns de intérprete: Someone Like You (2014) e, com Mateus Aleluia, Como Tu Ninguém (2015).
As músicas aqui agrupadas são, em maioria, as que mais gosto de seu cancioneiro. Estão separadas por álbum, os quais foram dispostos em ordem de lançamento. Será destacado quando a composição for uma parceria. Trata-se de uma apresentação panorâmica e pessoal. Uma introdução. Um guia de escuta.
Manu Lafer
A formação de Manu foi influenciada principalmente por Luiz Tatit, com quem estudou violão e de quem viria a ser parceiro de composição em Versão Fiel. De violão, foi aluno também de Cezar Mendes Nogueira (sobrinho e discípulo de Paulinho Nogueira) e de Ítalo Perón. Canto estudou com Ná Ozzetti, Fernanda Gianesella e Wagner Barbosa (especialista na técnica de speech level singing).
Dentre seus parceiros de composição, Danilo Caymmi é o mais recorrente. Foi parceiro direto, além do citado Tatit, de Dori Caymmi, Fábio Tagliaferri, Guilherme Wisnik, Alexandre Barbosa de Souza, Bruno Cara, entre outros. E foi parceiro, digamos, indiretamente, de John Pizzarelli e Jessica Molaskey, para os quais escreveu uma versão de Perfect Afternoon, canção de autoria deles.
Os álbuns de Lafer tiveram a colaboração de alguns dos mais prestigiados arranjadores brasileiros, sendo a mais extensa colaboração a com Lincoln Olivetti (com quem trabalhou por 11 anos, dois álbuns completos inclusive). Jacques Morelenbaum, Luiz Brasil, Dori Caymmi, André Mehmari e Jetter Garotti Jr são outros arranjadores que escreveram para álbuns de Lafer.
Esses álbuns tiveram como produtores renomados músicos, principalmente o premiado Alê Siqueira, que assina quase a discografia completa de Manu, e cuja formação erudita no Instituto de Artes da UNESP ainda ecoa na profundidade de suas produções e arranjos. O DVD A Lente do Homem, primeiro registro ao vivo de Manu, foi produzido por Déo Teixeira. Swami Júnior (Omara Portuondo) e Fabio Tagliaferri assinam um outro CD.
Manu tem sido cantado por importantes intérpretes, como Nana Caymmi, Ná Ozzetti, Mateus Aleluia, Germano Mathias, Mônica Salmaso, Cris Aflalo, José Miguel Wisnik, entre outros.
O guia de escuta (e de leitura)
Escutar todos os álbuns é o melhor modo de você, por si, compreender o cancioneiro de Manu Lafer, mas você pode querer ou necessitar uma abordagem rápida. Esta é a razão de existir deste guia: oferecer cinco opções para você (começar) conhecer essa discografia autoral.
Se quiser começar por uma ou outra música, a minha sugestão é que escute e leia sobre:
1. Cidade Inacabada (5’): a mais representativa da peculiaridade de suas canções;
2. Ta Shemá (3’): se Manu fosse uma música, seria Ta Shemá;
Se optar começar por um álbum, comece pelo:
1. Ta Shemá: se Lafer fosse um álbum, seria este (60’).
Mas se preferir começar por um panorama curto, escute:
4. A música de destaque de cada álbum (50’).
Ou ainda, se preferir um panorama abrangente, são:
5. Quatro músicas por álbum, sendo essas nove destacadas (uma por álbum) mais três listadas depois destas (150’).
Cada uma das opções é aprofundada a seguir.
Por álbum, uma canção de destaque principal e três de destaque secundário
Depressa Amor
Depressa, amor
Que o mundo cansa
De esperar
Depressa, amor
Veja a vida
Não como ela está
Depressa,
Que é você quem vai chegar
Depressa,
Que sei quem você será
Depressa, amor
Tudo azul,
Ou tudo rosa já
Depressa, amor
Preto e branco
Só se for filmar
Depressa,
Que é tempo de passar
O tempo desse mundo
Quem sonhar
Presente no álbum Baião da Flor (1988), o único que Manu lançou sob seu sobrenome materno, Mindlin, Baião Da Flor é cantada belamente por Ná Ozzetti (1958). Caracteriza-se por opor o assunto da letra ao afeto resignado da música. A música está calma enquanto o eu-lírico versa a pressa que pode necessitar reclamar um amor. Esse diálogo de afetos, no caso, um divergente, foi elevado a patamar único pelo alemão Robert Schumann (1810–1856) em seus lieder. A harmonia e o acompanhamento lembram as Gymnopedie, do francês Erik Satie (1866–1965), e têm uma rítmica atípica no cancioneiro de Lafer. Formalmente, a parte cantada é seccionada em duas partes, e é abraçada pela cadência instrumental da introdução e sua reaparição final. Introdução e coda contêm o cromatismo típico de sambas como Carinhoso e Aquarela do Brasil, o que vincula esta canção ao cancioneiro nacional e em especial à canção Cidade Inacabada, do próprio cancionista.
Mais destaques do álbum Baião da Flor (neste e nos demais álbuns, os destaques estão na ordem de numeração das faixas, não de preferência):
- Eu Vou Te Pegar
- Nascimento
- Deusa Densa
A Lente do Homem
Eu leio o céu de baixo
Até sem telescópio
É que o céu sou eu
Porque o céu é um ser
Eu leio a mão de cima
Até sem microscópio
É que a mão é Deus
Porque a mão é um ser
E se a lente do homem
Dê Deus, onde a lente
De Deus vê o homem
Saber é a imagem da fé
Que do outro se crê
E se do núcleo da célula
A íris espelha o destino
O dilema: ou a morte
Ou o bom, e o belo, e o dom
Eu leio o céu de baixo
Até sem telescópio
É que o céu sou eu
Porque o céu é um ser
Eu leio a mão de cima
Até sem microscópio
É que a mão é Deus
Porque a mão é um ser
E se o amor é a fé
Que do prisma do afeto
É o fim que é o feto
Onde o ventre é o teto
Que o tato tocou
E porque há sinfonia
Há também harmonia,
Há também melodia
E o dia, e o ‘ia’, e o ‘a’ que criou
Música que costuma despertar interesse imediato, A Lente do Homem foi lançada no álbum Doze Fotogramas (2001), o qual contém treze músicas, e não doze. Doze Fotogramas é também o título de outra canção do citado. Este tipo de jogo de “o que é o quê?”, de “cadência de engano”, é uma das características que consta em A Lente do Homem e na obra do cancionista; foram destacadas no artigo que escrevi sobre outra música deste álbum, Cidade Inacabada, que considero uma das duas melhores de suas canções junto à (então ainda não lançada) Afeto Santo. Do álbum, A Lente do Homem é a mais lembrada e conhecida, também por ter sido cantada e gravada por notáveis do canto popular brasileiro, como: Mônica Salmaso, que a gravou no Doze Fotogramas; Ná Ozzetti, que a gravou no álbum próprio Embalar (2013); Mateus Aleluia, que a gravou em Cinco Sentidos (2010), e Cris Aflalo, que a gravou, em 2008, no DVD ao vivo que compartilha o título da canção em destaque, primeiro álbum ao vivo de Manu Lafer.
O eu-lírico apresenta uma questão ontológica: em se tratando do homem e do Homem, quem vê quem e como? Quanto se vê e quanto se interpreta? É uma versão poética de questões ancestrais. E contemporânea, como atesta a discussão levantada pelo Bóson de Higgs. Acredito que justo para focar no texto, a melodia simplifica bastante a divisão rítmica, chegando ao ponto de virar um moto perpetuo, como veremos abaixo.
Esta regularidade rítmica se estende ao acompanhamento; é conhecida de diversos estilos. (Tangueiros chamam-na de trés-trés-dós, e a conhecem intimamente. Isso explica a escolha do arranjador pelo timbre do acordeão? Apostaria que sim.) Também a harmonia é simples, uma das mais simples do cancioneiro de Lafer.
Mais destaques do álbum Doze Fotogramas:
- Memória
- Se Couber
- Cidade Inacabada
Pedir Pra Voltar
Mostra
Ouço de ti, só
A minha história contada
Cada, cada minuto
Eu vou pedir pra voltar
Gosta?
Faça um poema
Que tenha a beleza da arte
Falte, com a verdade
E sem me deixar terminar
Tenho sido tão intenso
E tão sofrido
Coisa estranha
O meu sorriso
Recupera teu amor
oje em dia eu sou contido
Sou fiel, arrependido
E só penso “o que passou…
… passa”
Passa pro fim, já
Para que a graça arrebate
Dar-te, dar-te o destino
Esse é meu hino
E não mais
(esse é meu hino e não mais)
Lançada no álbum O Patriota (2002), no qual todas as músicas têm autoria dividida com o seu mais recorrente parceiro de composição, Danilo Caymmi (1948-), Pedir Pra Voltar é música dos irmãos Danilo e Dori Caymmi (1943) (este, quem tocou a bonita parte de violão do arranjo) e letra de Manu.
Como em outras de suas canções, o esquema rítmico acompanha a divisão formal da música. Nesta, as partes A (1ª, 2ª e 4ª estrofes, sobretudo as duas primeiras) são concentradas em torno de fonemas com a vogal a, seja esta tônica ou átona; e na parte B (3ª estrofe), usada como refrão, a letra se concentra em fonemas em que a vogal i é tônica. A última aparição da parte A se vale de ambos os fonemas, como que liquidando e concluindo elementos sonoros em que a letra se fundamenta (passa, graça, dar-te; destino, hino). Harmonicamente, a música é simples, não obstante, cumpre: A1 e A2 em sol maior; B1 na tônica relativa, si menor; B2 na mediante superior si maior; e o A3 volta para sol maior. O canto original esteve a cargo de Nana Caymmi (1941).
Mais destaques do álbum O Patriota (as três de Manu e Danilo Caymmi):
- Cândido
- Insônia
- Tangorel
Com Fantasia
Fantasiar não é sonhar
Já sonhar
É a noite acabando
Não é pra crer,
Nem é pra ter
Faça tudo agora
Para mim,
Na madrugada,
Sem porquê
Você vai acontecer
Eu não quero amanhecer
Porque eu te quero
E nada mais
Você
Por quê me quis?
Destino?
Vida?
Fala!
Você vai jurar
Deixar de sonhar
Não é você.
Só nós dois
Sabemos
O que nos fazemos
Para a madrugada
Acordar mais tarde
Dueto desde a sua concepção, Com Fantasia é parte do álbum Grandeza (2006), no qual Agda Sardenberg canta com Manu Lafer. A música é clara referência à canção Sem Fantasia, de Chico Buarque (1944), com a qual dialoga, senão responde para. Buarque a escreveu, em 1967, para a peça de teatro Roda Viva.
Vem, meu menino vadio
Vem, sem mentir pra você
Vem, mas vem sem fantasia
Que da noite pro dia
Você não vai crescer
Vem, por favor não evites
Meu amor, meus convites
Minha dor, meus apelos
Vou te envolver nos cabelos
Vem perder-te em meus braços
Pelo amor de Deus
Vem que eu te quero fraco
Vem que eu te quero tolo
Vem que eu te quero todo meu
Ah, eu quero te dizer
Que o instante de te ver
Custou tanto penar
Não vou me arrepender
Só vim te convencer
Que eu vim pra não morrer
De tanto te esperar
Eu quero te contar
Das chuvas que apanhei
Das noites que varei
No escuro a te buscar
Eu quero te mostrar
As marcas que ganhei
Nas lutas contra o rei
Nas discussões com Deus
E agora que cheguei
Eu quero a recompensa
Eu quero a prenda imensa
Dos carinhos teus
Ambas descendem de Samba em Prelúdio, de Baden Powell (1937–2000) e Vinícius de Moraes (1913–1980). Em última instância, derivam das pequenas óperas barrocas, conhecidas como operetas (vocábulo sem tom depreciativo).
Eu sem você não tenho porque
Porque sem você não sei nem chorar
Sou chama sem luz
Jardim sem luar
Luar sem amor
Amor sem se dar
E sem você
Sou só desamor
Um barco sem mar
Um campo sem flor
Tristeza que vai
Tristeza que vem
Sem você meu amor eu não sou
Ninguém
Ah, que saudade
Que vontade de ver renascer
Nossa vida
Volta querido
Os meus braços precisam dos teus
Teus abraços precisam dos meus
Estou tão sozinha
Tenho os olhos cansados de olhar
Para o além
Vem ver a vida
Sem você meu amor eu não sou
Ninguém
Com Fantasia, Sem Fantasia, e Samba em Prelúdio têm a mesma forma musical e poética: as três são A; B; A & B (sobrepostos). Música, letra e canto seguem-na. Nas primeiras partes, cantam o primeiro personagem; e nas segundas, o segundo personagem, que responde ao primeiro. O que é típico. Atípico é que não há resolução da tensão emotiva, pois nas terceiras partes os dois personagens discutem sobrepostos. Confundem-se. Mas não se fundem. Apaixonados, mesmo quando se sentem uno, são líquidos que, se a turbulência cessa ou não se transmuta em um novo e bom, decantam e se separam.
Mais destaques do álbum Grandeza:
- Conversa de Japi
- A Dança
- Murundum
Ta Shemá
A alma, o salmo, a flama, a chama, a neshamá
Ta shemá, ta shemá
A água, a vaga, a frota, a fraga da torá
Eu quero vir Inês chamar
Os céus dos céus, raquéus
O leite, o véu, a luz, o lar
Ta shemá, ta shemá
O mês, a vez, o nes, Inês
Irmã do mesmo, siamês
E neste ente inestimar
Vem escutar, após, a mais
O tempo, o topo, o tampo,
A via, as vidas, alegrias
Onde havia algaravia
O giro, o suspiro, a tocha,
A pira vir a deflagrar
Soar midrash e sussurrar mishná
Que era e haverá antes
Das vogais errantes
Lançado dez anos depois do primeiro álbum, Ta Shemá (2008) é o meu predileto da discografia em exposição. (Não sei precisar se é coincidência por ser o primeiro que conheci.) Um álbum de arranjadores, diz modestamente o cancionista, que convidou cinco dentre os melhores do país: Lincoln Olivetti, Dori Caymmi, Jacques Morelenbaum, Luiz Brasil e André Mehmari. A variedade das composições foi refletida na escolha dos arranjadores e nos arranjos produzidos. Arranjo e música de destaque, na minha opinião, é Ta Shemá, a canção que dá nome ao álbum. Também poderia ser a Elevador, uma das que explicam por que o produtor musical Alê Siqueira chama Manu, no contexto da MPB, de “o Escher da harmonia”.
Ta shemá, “vem ouvir” em aramaico, é o chamado necessário desta letra que é uma fértil profusão de evocações e invocações festivo-religiosas, sobretudo judaicas. Trata-se de um caso excepcional desta discografia, creio que o único, em que a fé do músico é claramente assunto de uma canção; mas mesmo nesta, o enfoque não é de pregação. Tampouco é prescritivo, nem é claramente delimitador: referências como o vocábulo “algaravia” nos colocam em dúvida se o sentido mais provável é o genérico – de falatórios sobrepostos (as “vogais errantes”?) – ou o específico – o modo como se dizia, na Península Ibérica dos tempos da diáspora sefardita, da fala acelerada dos mouros. E se o sentido for o específico, o que inclui os árabes, as camadas de significação e interpretação são maiores e mais vagas ainda. Se houvesse um gabarito interpretativo para a letra desta canção, decerto seria um cheio de remissões. A impressão de todo que me passa é o mote principal: vir ouvir. A rítmica da introdução soa um bater palmas. Uma festa, talvez? Com certeza, um chamado. Em se tratando de um texto complexo assim, então o chamado é: venha ouvir muitas vezes.
Independente da complexidade interpretativa do texto, a construção fonêmica é bem-sucedida de um jeito tal, que pode-se desfrutar de cantá-lo até sem distinguir o que nele é transliteração ou mesmo sem ter as referências profundas histórico-religiosas que creio que o autor tem. Sabemos o que é isso. É o prazer em cantarolar e em escutar uma Nessun Dorma sem compreender o idioma italiano ou sem conhecer o libreto da ópera. Consideremos o prazer dos fonemas, ele extravasa culturas.
A música de Ta Shemá tem uma característica comum a muitas das canções de Lafer, mas não só às dele: quando as progressões harmônicas são complexas, a melodia é simples. Em torno do pentacorde que vai da tônica à quinta justa, a maior parte da melodia acontece. O chamado ta shemá acontece dentro desta tessitura e, mais especificamente, na porção da escala pentatônica contida nele. Ou seja, tão mais simples a melodia quanto mais complexa a harmonia e quanto maior a necessidade de fazer o texto ser ouvido. Não por acaso, quando a melodia sai do limite da quinta, destina-se à oitava, a nota que vai reafirmar a altura fundamental, amplificando-a. A maior parte da música está no modo eólico, o que favorece a sonoridade de pentatônica enfatizada pela cadência do sétimo grau da escala menor para a tônica (fá–sol).
Mais destaques do álbum Ta Shemá:
- Poesia e Prosa (Manu Lafer & Danilo Caymmi, sobre texto de Antônio Cândido de Mello e Souza)
- Versão Fiel (Manu Lafer &Luiz Tatit)
- Elevador
Vinheta Baiana
Vou me dirigir ao quinto andar pra visitar a Paula Baiana
A Paula tá na aula
Tá? Eu toco violão
Na toca de veludo mora dentro o violão
Se a gente abre
A mola joga fora o violão
A Paula me encolheu eu tô no ôco do caixão
Vinheta Baiana, lançada em 2012, é o corolário do objetivo que observo no álbum Mané Mandou: em comparação com os álbuns anteriores, neste, Manu Lafer me parece almejar simplificar a harmonia, na tentativa de simplificar as canções como um todo (clara exceção é a instrumental e densa Um Abraço no Pizza, dedicada ao casal de músicos John Pizzarelli & Jessica Molaskey ou à família de músicos americana Pizzarelli, cujo mais notável membro é Bucky Pizzarelli). A constante dos outros álbuns era gotejar simplicidade em rio agitado; em Mané Mandou, é o invertido.
Nomeada vinheta, em alusão direta à sua brevidade e – agora especulo – em alusão indireta ao seu estilo radiofônico. A forma dura o bastante, nada falta: as partes A, cada qual com 4 compassos, ladeiam a parte B de 8 compassos. As partes A são escalares; a B, alternância de saltos de terça compensados por movimentos de segunda. Ambas as partes direcionam para a terça da tonalidade, o que atribui o caráter cintilante da melodia, serelepe e de galhardia própria, e bem localiza o assunto da canção em um ambiente de idílio escolar.
Existe a tentação de classificar Vinheta Baiana de miniatura de canção, considerando sua brevidade: 22 compassos que totalizam 44 segundos. Tentação errônea: esta é mais uma canção despojada das repetições típicas da forma do que uma miniatura; quanto menos é um aforisma da forma musical, termo que Flo Menezes (1962) bem usa no livro Apoteose de Schoenberg para classificar as miniaturas musicais de Anton Webern (1883–1945), escritas no contexto da Segunda Escola de Viena (por exemplo, a quarta das Orchesterstücke, opus 10, basta-se com somente seis compassos que somam aproximados 19 segundos).
Mais destaques do álbum Mané Mandou:
- Rosas e Cravos
- Zing
- Um Abraço nos Pizza
Esmalteca
Gabriela, Gabrielle,
Misturinha até Paris
Maçã do Amor, Final Feliz
ah, Flamenca, Ah, Cigana,
Ninfa, Dengo, Pôr-do-Sol
um Videoclipe, um Tititi
Fio de Seda, Véu,
Salomé, Frapê,
Prenda, Tafetá, Polar
Areia ou Nova Era?
Papaya, Canela, Tanga, Baunilha,
Neve, Neblina, Risque, Zazá
essa Espera é Contigo
quem vê Caras rói as mãos
deixa Beijar, Obsessão
Via Láctea, não dissolva,
Serenata é pra trocar,
gostar de Luxo e retirar
De letra caleidoscópica, Esmalteca pertence ao mais atípico dos álbuns de Lafer, Canto Casual (2014): neste, os standards do cancioneiro americano, de gosto e interesse de Manu, fazem-se presentes e manifestos, exaltando o jeito jazz. Este álbum foi lançado junto ao Someone Like Me, no qual Manu interpreta standards.
Esmalteca se vale dos evocativos, divertidos e pitorescos nomes de cores de esmaltes. São (combinações de) vocábulos que parecem ora aludir, ora narrar. É um microcosmo feminino gracioso que só poderia ter sido contado com um misto de reverência e curiosidade. É o que explica o recurso da justaposição de palavras pouco ou casualmente interligadas. É um saltitar.
Na parte musical chama atenção a recorrência da polarização do intervalo de terça descendente, que une as partes A e a parte B.
Mais destaques do álbum Canto Casual:
- Sonho Normal
- Céu e Chão
- O Milênio e o Minuto
Ou Sou Eu
Será que você sabe
Ou sou eu é que não sei
Por que acontece
Que eu não posso mais viver sem você
Um ano já passou, um mês a mais
Como no ano em que você nasceu
Será que eu nasci também
Antes de você me aparecer
Será que eu sabia viver
Antes de ouvir a tua voz
Antes de eu saber quem somos nós
Que a minha casa já morava
Tão vizinha ao coração
Todos os dias com o meu amor
Pra você
De um bonito lirismo que, graças à família Caymmi, podemos chamar de baiano, e não só por Ou Sou Eu ter sido cantada e tocada por Dori Caymmi. Dori é quem toca violão em todo o álbum Um Lado Meu Que Você Não Conhece (2016) e canta também a reinterpretação de Samba de Uma Nota Só. Os Caymmi são influência e parceiros ocasionais de Manu Lafer; Danilo Caymmi, parceiro recorrente. Como o álbum O Patriota, este é outra clara demonstração de admiração mútua.
Nesta toada, o eu-lírico, enamorado, duvida retórica e declamadamente de ter ciência de si antes de haver presença da amada (“será que eu nasci também antes de você me aparecer?”, “será que eu sabia viver antes de ouvir a tua voz?”). Tamanho afeto é cantado por uma melodia bonita não obstante contida, o que enfatiza a intangibilidade da musa. Circunscrita ao limite da oitava, a voz salta quase que somente nos inícios das sessões e em quase todas as vezes na palavra “será”.
A harmonia usa constantemente de inversões dos acordes, as quais deixam as conduções harmônicas, diretas, mais leves. Como leve é esta canção. Um testemunho do pesar implícito no amar.
Mais destaque do álbum Um Lado Meu Que Você Não Conhece:
- Festiva (lançada primeiro no DVD A Lente do Homem, em 2008, e também é destaque deste)
- Você Já Sabe
- Retrato da Mulher Amada Bebendo Água de Madrugada
É um cavalo
É um cavalo, é uma girafa
É um cachorro, é uma vaca
É capivara, é papagaia
É andorinha, é uma só
É um elefante, é um bicho, é um hipopótamo
Rinoceronte, um monte de quati, senhor
É uma zebra, é chimpanzé
Aqui lagarta, ágora gralha
Alta montanha, homem cavá-la
É criancinha, é sinhá só
É um canguru, é um salto de urubu bambu
É uma fonte, um tanque, um tanto de tatu
Eu não vejo o seu leão
Não estou vendo o seu pavão
Que garça? Que situação!
Chorar de jacaré
Fruto da reunião criativa entre Luiz Brasil (1954-) e Manu Lafer, É Um Cavalo é a mais lhana das canções do álbum As Luas de Marte (2016; a ser lançado em breve). Brasil e Lafer se conheceram profissionalmente no álbum Ta Shemá, para o qual Luiz escreveu três arranjos. As Luas de Marte é composto de músicas para crianças… e para seus pais. Uma constante em álbuns do tipo é ter de equacionar o interesse que as músicas despertam nos infantes e nos seus responsáveis; são os segundos que decidem, ao fim e ao cabo, da compra à escuta. Também nesse sentido, o álbum é muito bem feito, pois perpassa idades. No momento da história em que pais pouco podem ficar com seus filhos e em que filhos são criados à base de YouTube e de reciclagem de canções folclóricas, é um alento que músicos como Luiz e Manu criem para os pequenos. Até uma música instrumental há em As Luas de Marte (Prelúdio para Beatriz): oxalá uma porta de entrada para o gênio generoso de um Schumann, expresso, por exemplo, em seus opus 68 e 118.
Cantada por Karina Zeviani, que, com exceção de Propaganda e Estrada do Guri, canta o álbum todo, É Um Cavalo emula o jeito de crianças apontarem, com júbilo ou espanto. É o tom de interjeição típico do dilúculo da vida, dos no alvor do conhecer. É o que adultos se ressentem de perderem: o entusiasmo pelo descobrir. Musicalmente, está dividida em três partes contrastadas pela divisão rítmica. Mas sem grandes contrastes, rítmicos ou harmônicos: o foco é a letra.
Mais destaques do álbum As Luas de Marte:
- O casamento da Centopéia
- Propaganda
- Estrada do Guri